domingo, maio 04, 2008

Ao agradável


Tenho pensado muito na relação de cachorro atrás do próprio rabo que a academia estabelece consigo mesma. Tenho ficado muito desanimado por não conseguir postar nada por aqui. Juntemos o útil ao agradável: vai então o "resumo expandido" que mandei pra tentar apresentar na SOCINE, em Natal, em outubro. Aí vai:

"Jonas Mekas: subjetividade como movimento

Em 1949, o exilado Jonas Mekas chega à Nova Iorque procurando um lugar para se reconstruir, para fincar raízes. Compra uma barata câmera 16mm para gravar suas impressões daquele lugar tão diferente de sua terra natal. Nos anos 60, Mekas se torna figura de destaque dentro do Novo Cinema Americano, atuando como crítico, exibidor e realizador. Porém, o foco o meu trabalho é analisar sua principal obra audiovisual: seus filmes-diário, os “Diaries, Notes&Sketches”. Me ocuparei de como estes filmes funcionam como “invenções de si” e como, neste processo, eles expressam mobilidade, ao invés de fixidez.

Os filmes-diário são constituídos por momentos ordinários. Constituem-se como um fluxo de curtíssimos fragmentos de imagens, entremeados por cartelas, e acompanhados por uma narração em voz over, feita por Mekas anos depois das imagens. O intervalo entre a imagem e o comentário-over chega a 27 anos. Vemos momentos banais enquanto que a voz de Mekas vai revisitando aquelas imagens, às vezes comentando, às vezes divagando, às vezes buscando algum sentido nelas.

A inscrição do autor nestas imagens é mais indireta do que direta. Mekas não está dentro do quadro o tempo todo. Está presente pelo modo como a câmera filma, como intermediário entre o espectador e a cena. Suas imagens são traços de experiência, marcadas pela relação da câmera com as cenas. Seu diário aponta para “fora” para constituir a si mesmo. Os filmes-diário propõem uma maneira de fazer audiovisual em primeira pessoa que se afasta do modelo confessional, que procurava descrever um “interior”, e ocupam-se de um “exterior”, onde é ressaltada a relação que o sujeito-câmera estabelece com este “fora”.

Estes filmes nascem da decisão de transformar filmagens caseiras, cotidianas, em obra. Estão, ininterruptamente, “em produção”. Mekas nunca pára de filmar A partir do momento em que transforma uma ação cotidiana em arte, sua a vida e sua obra passam a se confundir e a se retro-alimentar. Ao mesmo tempo em que cria um sujeito a partir de seus filmes, estes alimentam sua personalidade, sua identidade, pois funcionam como “agentes de memória”, como uma espécie de cérebro que arquiva ou esquece.

Preservar, fixar, guardar: este é o impulso fundamental do documentário segundo a análise de alguns dos seus principais teóricos, como Bill Nichols e Michael Renov. Deste desejo nascem também os filmes-diário de Jonas Mekas. A partir de uma história de sucessivas perdas, gravar suas memórias em filme lhe daria um arquivo fixo, que não mais poderia lhe ser arrancado. Entretanto, com o passar do tempo, com o afastamento temporal daquelas experiências guardadas em emulsão, Mekas percebe o fracasso de guardar através de filme. As experiências vão perdendo seu sentido e passam a se tornar “somente imagens”. Tornam-se a evidência de uma perda, de uma ausência que a passagem do tempo submete todas as coisas. Ele se dá conta que as experiências são contingentes, que estão circunscritas ao momento de sua manifestação.

Partindo do desejo de preservação, esta obra se torna a apresentação de uma perda, de uma ausência. Os filmes se equilibram entre uma retrospectiva do passado irrecuperável e um prazeroso e provisório controle sobre sua reorganização, entre o desejo de retenção na representação e a perda experimentada.

Mesmo fracassando em dar concretude, fixidez, à experiência vivida, a possibilidade da auto-invenção não é anulada. Os filmes funcionam como “depósitos de memória” que passam a ter função, a ter “vida”, na medida em que a revisita (momento da edição/narração) acontece. Nessa “segunda experiência”, Mekas representa a si, se apresenta através dos filmes, como processo, como sujeito em constituição permanente. Não está completamente nem no passado-imagem, nem no presente-voz, ele está entre os dois, sobre a instabilidade desta lacuna entre registros. É nesse movimento contínuo que sua representação do sujeito se baseia, entre passado e presente, entre som e imagem, entre matéria e memória."